breviedades pausadas

breviedades pausadas
entre o verde o vermelho

segunda-feira, novembro 13, 2006

no mar de águas


naquela manhã em que abri os olhos tive a sugestão de não vê-lo mais.
pensei, porque não, toda dor é mais ligeira quando corremos e não olhamos para trás.
ouvi a porta estalar, você embaixo d'água num ritual cotidiano de erguer-se novo antes de sair.
a barba que me roçava as entranhas, o cheiro que impregnava a minha pele, os cabelos eriçados, tão seus. resquícios agora no ralo, direto, já que se aprumava ali um novo homem.
o perfume -fecho os olhos e sinto atravessando as frestas a essência, adoro seu cheiro misturado com gotas silvestres; me inebria.
fico estática na cama. debaixo dos lençóis comprados a medida de casal. agora éramos um, ou duas partes.
ouço toda a sinfonia que faz no banheiro, dia após dia.
abre a porta, na cama apóia a toalha, a roupa separada ao corpo nu.
todas as noites eu escolho a camisa de botões, a calça de linho
e dou o nó na gravata. uma supertição nossa, a combinação de cores.
gentilmente você agradece, beija-me a boca com hálito fresco, sorri.
desço as escadas. você alguns passos a frente.
os sons instrumentais da copa misturam-se a ópera do gato.
você arruma a mesa e eu corto o pão.
café, laranjas, mamão. bolos, queijos. leite.
escova os dentes, sorri, se alimenta, se calça, não necessariamente nessa ordem.
mas sempre sai. atravessa a porta ao carro. liga-o, acena e some.
fecho a porta e não sou mais ninguém.
sou um alguém sem função em si. acompanho as horas que se arrastam.
você me consumiu demais, eu quis ser outra parte sua, um braço.
uma muleta. talvez um guarda-chuva.
e eu aqui nesse mar de águas, afogando-me, debatendo-me, esquecida.
o gato se roça na minha perna, sobe logo atrás de mim, as escadas.
deita-se comigo no leito-caixão aonde vejo padecer qualquer coisa, eu.
jaz um qualquer coisa de mim pelos cantos da casa, alagada de mágoas.
os risos que se prendem nas molduras nossas, paralisados no tempo.
do banheiro ainda exala o seu cheiro, respiro profundo consumindo todo o ar.
você é o ar em si, absoluto.
expiro. o animal me ignorando se lambe, banho matinal.
e eu me enrolo ainda mais, pensando em fugir, correr sem olhar para trás.
fecho os olhos e me vejo, sentada num café anos atrás.
uma fulgaz felicidade ímpar nos olhos, e você refletido neles.
o "sim" repetido diversas vezes, eufórico como as pernas, as mãos.
abro-os, já molhada. a água chegou a linha da cama.
ela sobe lenta e contínua. sinto-a na face, sobe acariciando as bochechas.
entra pela boca, pulmão, nariz.
o corpo num reflexo animal me cospe da banheira.
expectoro a água. retorno a cama, úmida. sozinha, fracassada.
ouço a campanhia, desço trôpega, fito a fechadura que roda só.
você, sim você, eu, qualquer função, êxito.
deito em posição fetal e você me envolve. volto a primeira noite que te vi.
sussurra, ainda há tempo de mudar.

2 comentários:

Clara Mazini disse...

Lembrou-me a tal música

"Todo dia ela faz tudo sempre igual
Me sacode às seis horas da manhã
Me sorri um sorriso pontual
E me beija com a boca de hortelã."

:)

Nana Magalhães disse...

eu to numa lan.
nem dá pra ler o texto com calma.
quero ler depois.
o que vc tem?
saudades..
pensei em passar aí hoje com a galera pra gente dar uma volta na ppraia..
mas não sei se vc ainda ta de cama.
qualquer coisa me liga: 30261074.
beijos, beijos.

o abraço foi lindo!